Vagabundo, baderneiro e criminoso – Quando a pimenta não é nos olhos dos outros

Ele veio se aproximando, juntamente com outros policiais (não lembro se havia mulheres) e de repente o mundo só existia entre esse espaço – o meu olhar e o dele. Em seu olhar, por entre uma mistura de ódio e apatia, insinuava que eu devia sair daquele lugar, em frente ao portão de acesso lateral da Câmara de Vereadores/as de São Leopoldo, de braço dado com outras companheiras mais ou menos experientes na via da desobediência civil pacífica, senão... Movimentos pra cá e pra lá, as pessoas paradas na frente iam sendo removidas, empurradas, abrindo caminho até que só restávamos nós. Gente atrás do portão puxava e empurrava e ele(s) iam se aproximando até ficar à distância de um palmo. Olho no olho. Eles tinham capacetes, coletes, escudos. E de onde não se podia ver, em algum lugar entre o meu olhar e o dele, um jato diabólico que levou apenas alguns segundos para mudar a minha perspectiva sobre o que estava acontecendo, sobre as minhas possibilidades de ação e sobre o mundo. Fechei os olhos para aliviar a sensação apenas para descobrir que levaria algum tempo para poder abri-los novamente. Segurei no portão, pensei em Jesus e em tantas coisas que reafirmavam a convicção de que eu não devia soltar, e a ardência provocada pelo spray de pimenta tornou-se tão insuportável que, perdido no escuro dos meus olhos que não se abriam, fui arrancado do portão e empurrado para o lado, ou algum lugar que eu não tinha certeza onde era. Ouvia gritos, tentava intuir o que estava acontecendo, entre a dor lancinante que me fazia lacrimejar sem chorar, cuspir sem saber por que e sentir todo meu corpo nos meus olhos fechados. Abandonado, sem ter como me deslocar, forcei os meus olhos e na penumbra distingui algumas pessoas conhecidas. Novamente ainda com os olhos fechados fui caminhando até tocar em alguém, perguntar por um amigo e ser acolhido por várias pessoas que passaram óleo, deram muitas recomendações, me conduziram para um lugar onde pudesse sentar. Abraços e carinhos de pessoas conhecidas e desconhecidas. Entre as vozes ouvi Angélica, que tinha conhecido mais cedo, quando fazíamos o debate sobre as pautas a serem defendidas pelo movimento. Não tinha vários dentes, agia como se estivesse embriagada ou com algum distúrbio mental, estava ali na praça como o seu locar familiar. Confirmei que se tratava dela (pois não conseguir abrir os olhos para vê-la) e ela sentou-se ao meu lado começando a passar a mão pelo meu rosto, dizer que já ia passar e sugerindo várias outras receitas sobre como lidar com a situação em que me encontrava. Meus olhos ardiam por ela! E por todas as pessoas que, quando consegui abrir os olhos, continuavam em manifestação na frente da Câmara contra a votação da reforma administrativa proposta pelo poder executivo municipal e enquanto vereadores/as continuavam lá dentro, com vários/as outros/as funcionários/as contratados através de Cargo Comissionado (CC), terminando por aprovar a dita reforma e ignorar por completo o movimento popular do lado de fora. Fui embora com amigos/as sem conseguir entender, com um misto de indignação, frustração e força, com os olhos que ardem ainda agora, embora eu já não saiba se é do spray de pimenta ou de tudo que ele representa quando usado por forças militares na violação do direito de manifestação, protesto e luta.
Descrição muito subjetiva? Vamos aos fatos objetiva/subjetivamente relatados.

14h – Cheguei ao acampamento “ocupa a praça” (em frente à Câmara de Vereadores/as de São Leopoldo) do movimento #naruasaoleo. Conversei com algumas pessoas, li os cartazes, sentei enquanto as pessoas almoçavam feijão, arroz e carne doados e cozinhados ali mesmo num fogãozinho de uma boca. Algumas pessoas dormiam e outras iam chegando, trocando informações e ideias sobre o que tinha acontecido e ia acontecer naquele dia.
15h30min – Nos reunimos num círculo para iniciar as discussões previstas para a tarde sobre saúde, transporte público e reforma administrativa. Foi lida a carta protocolada pelo movimento junto ao Ministério Público, relatados acontecimentos anteriores (as manifestações na rua, a ocupação da Câmara de Vereadores/as para evitar a votação da reforma administrativa, a tentativa de expulsão pela polícia), esclarecidas as pautas do movimento (3 audiências públicas com sugestão de data e metodologia a ser construída em conjunto sobre os três temas), feitas algumas apresentações individuais e de entidades e organizações presentes, encaminhadas a discussão em três grupos de acordo com as temáticas propostas e acordado coletivamente que às 17h30min entraríamos na Câmara de Vereadores/as para participar da Sessão Ordinária. Em cima de lonas, cada pessoa se apresentou e cada grupo discutiu o seu tema aprofundando as questões envolvidas e fazendo propostas de encaminhamento.

16h30min – Um grupo de militantes do Ceprol Sindicato chegou em frente à Câmara com carro de som, faixas e um documento com reivindicações. Aparentemente foram recebidos/as, entregaram o documento, houve alguns fogos e foram embora.
16h50min – Algumas pessoas começaram a dirigir-se para a porta de entrada da Câmara e tivemos a notícia de que iriam distribuir senhas para quem quisesse entrar (algo que aparentemente já tinha sido feito em sessão anterior, onde foram distribuídas – segundo informações – 120 senhas).

17h – Um grupo de guardas municipais chegou a se posicionou em frente à entrada principal da Câmara.
17h15min - Recebemos a informação de que apenas seriam liberadas 20 (ou 26) senhas e logo percebemos, por entre frestas das cortinas fechadas nas janelas do Plenário, que funcionários/as identificados/as como ocupantes de Cargos Comissionados (CC) estavam ocupando assentos tendo entrado pela porta dos fundos. Em assembleia, decidimos bloquear as entradas e permitir o acesso apenas das pessoas que tinham senha, assim como arbitrariamente determinado pelo presidente da Câmara.  Formamos cordões humanos, de braços dados, na frente das três entradas (inclusive nos fundos).

Daí em diante, entre cantos e palavras de ordem, víamos manifestantes sendo empurrados/as e mais pessoas sem senha entrando. Gritávamos “sem violência, sem violência”. Depois de algum tempo chegou um grupo da Brigada Militar – com coletes, capacetes, escudos e algumas armas em punho. Alguns/as vereadores/as iam chegando, outras pessoas vinham acompanhar, o clima ia ficando tenso. Muitas pessoas ao celular. Um grupo se reunia atrás do lugar onde estávamos, fazendo provocações e aos poucos se aproximando para forçar a nossa saída. O grupo da Brigada Militar se posicionou e, com spray de pimenta e força bruta, foi removendo os/as manifestantes parados/as de braços dados em frente à Câmara – alguns/as cantavam, alguns/as oravam, alguns/as gritavam, alguns/as choravam.
Com o uso de violência e desrespeito o acesso foi liberado. A sessão ocorreu a portas fechadas. A manifestação continuou.

Teorias e conceitos, ideias e análises podem ser feitas (e serão) dessa situação e de tantas outras. Mas não tem nada que seja capaz de expressar a realidade de os olhos atingidos por um spray de pimenta e tudo o que ele representa. Nem essas poucas palavras, ou muitas outras que ainda virão.

Não ouso mencionar aqui as minhas credenciais ou títulos, porque elas não devem me fazer uma testemunha melhor ou pior do que qualquer manifestante que esteve lá. Assim como eles/elas, sou apenas um vagabundo, baderneiro e criminoso. E a pimenta que arde nos meus olhos arde nos deles e delas.

Era 11 de julho de 2013 – Dia nacional de lutas!

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